CARANGUEJO OVERDRIVE
Michele Rolim (RS), em Porto Alegre, 21/05/2016
Espetáculo da carioca Aquela Cia. de Teatro propõe uma reinvenção do ser político em cena
Em "Caranguejo Overdrive", a encenação de Marco André Nunes e o texto de Pedro Kosovski andam de mãos dadas

Teatro político se reinventa pela forma

Nas décadas de 1960 e de 1970, praticou-se um teatro político decisivo para o Brasil, mas parte da produção teatral dos últimos anos, talvez inspirada pelas manifestações de 2013, constitui-se em uma renovação desse gênero. Isso está muito evidente na programação do Festival Palco Giratório RS deste ano. Caranguejo Overdrive (RJ), por exemplo, d’Aquela Cia. de Teatro, não é apenas mais um espetáculo que trata sobre a situação política no país – ele propõe uma reinvenção do ser político em cena.

Preocupado sobretudo com a forma de dizer, o texto (de Pedro Kosovski) e a encenação (dirigida por Marco André Nunes) andam de mãos dadas, um não está vivo sem o outro. E é isso que torna a peça tão contundente. Em cena estão os velhos problemas do Brasil: diferenças sociais, abusos de poder, concentração de riqueza, etc. No entanto, a maneira de falar sobre eles não é a do velho conhecido teatro político, há uma reinvenção na narração, o que leva o público a outro estado de reflexão.

Temos basicamente três eixos que se cruzam de maneira quase orgânica. Um deles é o tema da fome, que teve como ponto de partida o livro Homens e Caranguejos, publicado em 1967 pelo geógrafo pernambucano Josué de Castro e que serviu de base para o movimento manguebeat, na década de 1990. Nele, o autor defende que a fome não é um fenômeno geográfico e, sim, social. O segundo eixo está relacionado com a Guerra do Paraguai (1864 - 1870), na qual Brasil, Argentina e Uruguai se uniram para aniquilar o país que dá nome ao conflito. Por fim, temos a cidade do Rio de Janeiro e suas transformações e disputas territoriais, muitas delas sob o “pretexto” das Olimpíadas de 2016.

Tudo isso se concentra em torno da figura de “um caranguejo que um dia foi um homem chamado Cosme” (Alex Nader, Eduardo Speroni, Fellipe Marques e Matheus Macena se revezam na interpretação). Cosme é um catador de caranguejos forçado a deixar o Mangue para servir na Guerra do Paraguai. Quando retorna devastado ao Rio, não reconhece mais a cidade, especialmente o Mangal de São Diogo, local onde nasceu e que está sendo transformado para dar lugar à Cidade Nova.

A mistura de planos temporais, que no primeiro momento pode parecer inusitada, funciona muito bem, como quando uma prostituta paraguaia (Carolina Virgüez) narra a Cosme sua visão sobre os acontecimentos no Brasil até os tempos atuais. Mas as falas só são potentes por conta da fisicalidade em cena, que nos oferece corpos políticos, constantemente atravessados pelos acontecimentos sociais, algumas vezes incorporando os movimentos truncados dos caranguejos. O cenário inclui uma caixa de areia e lama na qual um dos atores reveste todo seu corpo e fica imóvel na posição do crustáceo por 10 minutos. Infelizmente, em Porto Alegre, não foi permitida a presença de caranguejos reais em cena. A proibição se deu com base em lei municipal que veda o uso de animais silvestres em apresentações artísticas. O espetáculo perdeu em contundência com essa restrição: na montagem original, os caranguejos iniciam a peça dentro de uma gaiola e, no decorrer da ação, são libertados pelos atores (nas sessões em Porto Alegre, os animais foram substituídos por pedras...).

O espetáculo garante a vitalidade também por conta do caráter performativo e explosivo, no qual a banda ao vivo (composta por Felipe Storino, Maurício Chiari e Pedro Kosovski) flerta com o manguebeat, contribuindo significativamente com a encenação.

Aquela Cia. De Teatro, que completou uma década de existência no ano passado, já passou por Porto Alegre com as peças Edypop e Cara de Cavalo, repetindo a parceria de Pedro Kosovski e de Marco André Nunes. Em Caranguejo Overdrive, avança sua proposta de investigar as possíveis ressignificações das relações entre cena, música, espetacularidade e narratividades da memória do espaço urbano. Que este novo modo de fazer teatro político, que entende que o estar no mundo já é político, continue resistindo. Como na última fala profética da peça: “(...) a música dos trovões se aproxima, e eu sairei da toca, e junto comigo uma cambada de caranguejos”. Seria a minoria descobrindo que é a maioria neste país? Os oprimidos reivindicando maior participação politica e melhores condições sociais?

Precisamos de novos procedimentos teatrais para novos tempos. Falar de política é necessário, mas também é fundamental que não nos limitemos a purgar nossas culpas, sentindo aversão dos que estão no poder e compaixão dos que pertencem à base da pirâmide social. Que seja possível provocar outro estado de reflexão, uma catarse que nos faça realmente adentrar a lama na qual o contexto político brasileiro está enterrado até o pescoço. Quando a politica é uma grande encenação, o teatro deve responder à altura, em alta performance, em overdrive.